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sexta-feira, 4 de junho de 2010







Beira rio beira vida é o primeiro livro da série intitulada "Tetralogia piauiense", projeto literário do escritor piauiense Assis Brasil. As obras são ambientadas na cidade de Parnaíba, no período da primeira metade do século XX.

A obra põe em evidência os moradores e trabalhadores do cais: canoeiros, embarcadiços, estivadores, prostitutas, enfim o lumpemproletariado na hostil submissão à deidade-mercadoria. No livro, a prostituição marca gerações de mulheres, que, sufocadas pelo sistema, concebem-na como sina, uma maldição para a qual restava apenas a subserviência.

Para o entendimento da obra, começaremos com uma rápida reflexão sobre o título: Beira Rio (o porto, o contínuo movimento do rio que traz e leva esperanças, marinheiros, desilusões); Beira Vida (a marginalização social).

Essa marginalização é o tema predominante. A pobreza, o preconceito e a falta de oportunidades acabam por balizar o destino das personagens. Isto fica bem evidenciado em:

(...) Nunca conheci outra vida, tudo foi se ajeitando normalmente, acontecendo, acontecendo.
Tudo parecia natural para mim, não era de pensar muito.(...)


Em Beira rio beira vida, lancinantes reminiscências atravessam a trama, memórias vão grassando formas estéticas aos episódios, cuja narração remete à agitada rotina do cais de Parnaíba. A vida ribeirinha mobilizada pelas embarcações matiza gerações de marinheiros, canoeiros, barqueiros, taifeiros, enfim de todos os que têm suas trajetórias proliferadas em meio à agitação das águas, dos passos, dos gritos. Meretrizes se arranjavam pelas proximidades, dada a concentração da população masculina.

A ênfase da narração recai sobre a temática da prostituição em dois enfoques, especialmente: um exógeno, que fica a cargo do narrador impessoal de primeira instância; e outro endógeno, sob o comando da personagem Luíza, que vai tecendo a narrativa segundo a fruição de suas memórias.

Como veremos mais adiante, Luíza advém de uma tradição de mulheres do cais estigmatizadas pela prática do “comércio da carne”.

Adentrou o universo da prostituição como quem cumpre uma sina – a vida da avó, da mãe, uma maldição que se repetia nela. Cremilda, sua mãe, ouviu de uma antepassada que uma mulher havia sido presa, acusada de assassinar o amante, um rapaz rico por quem se apaixonara. Inconformada por pagar por um crime que não cometera, gritava e maldizia a tudo e a todos ao longo das noites na cela, submersa em uma revolta implacável. Ao dar a luz, amaldiçoou a filha e toda a sua descendência: “teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro”.

Embora o autor permita à personagem Luíza os discursos memorialísticos dos quais brotam a narrativa, a vida social do cais é a base espacial sob a qual o enredo é engendrado: “A sineta dos navios-gaiola, o apito mais grosso de uma barca, o grito dos canoeiros, o barulho seco do arroz e feijão pisados no cais, pareciam varrer com a brisa a calçada escura, cheia de lembranças”.

Uma vez que não apresenta ordem cronológica dos fatos, o romance se apóia no tempo da memória para dar coerência à narrativa, ou seja, apóia-se na maneira que o narrador relembra o próprio passado de uma maneira específica, com recortes específicos, num período de tempo específico. Nesse caso, o tempo da memória citado quer dizer um tempo sem qualquer coerência externa à mente do narrador. A beleza reside justamente nas características particulares do ato de lembrar, praticado no romance por Luíza: falhas, idas e vindas no tempo, a escolha de determinadas emoções e sensações. Utilizando como recurso estilístico a repetição constante de falas e ações, o autor consegue enfatizar a mesmice dos dias e a estagnação das personagens. As horas passam devagar e se tornam um fardo para aqueles que não têm rumo certo ou esperança de transformação. As mulheres do cais, especialmente, percebem o tempo de forma diversa. Para elas, os dias não são determinados pelo calendário, mas sim pela presença dos homens nas suas camas: Os homens deixaram a casa um a um – foram desaparecendo em silêncio. Contava a passagem dos anos pela freqüência deles. A figura masculina vem ressaltar a situação de dependência em que elas se encontram e a falta de controle sobre seus próprios destinos. Os retratos dos ‘clientes’ nas paredes de Cremilda são a prova de que também na realidade ficcional, as personagens só conhecem o tempo da memória e vivem das glórias da juventude e dos feitos de outrora.

Se o tempo pesa e seus efeitos não podem ser ignorados, o espaço não é diferente. A cidade de Parnaíba, especialmente o cais, exerce forte atração sobre os habitantes, não permitindo que se afastem dali sem que haja uma punição.

Isso acontece porque também o espaço conserva sua memória, aprisionando seus filhos eternamente nas mesmas posições da escala social: Você ficaria sempre com a marca do cais e ia acabar mesmo era amigada com um deles, Mundoca. Diante da inconstância do meio de vida do cais, o lugar de origem torna-se sinônimo de conhecimento e segurança, a única coisa realmente concreta na vida dessas pessoas: esperava sentada no cais, com a paciência e a certeza de tantos anos. Certeza de que só o cais existia realmente. E as coisas lhe aconteciam a partir dali e só tinham significação se começassem no cais.

Beira Rio Beira Vida é resultado de uma percepção muito particular da miséria e da prostituição. Uma vez que todo o romance é construído pelas lembranças de Luíza, parece coerente fazer uma análise do texto a partir dos fatos mais marcantes da sua narração, significativos não somente na vida da personagem, mas na fundamentação da denúncia social contemplada por suas lembranças, escolhidas de forma a ressaltar a situação de miséria em que ela se encontra, assim como os legitimadores dessa miséria (o que ela algumas vezes chama de sina, mas que em outras ocasiões ela identifica como a ação de pessoas de um meio social mais elevado). Essas lembranças fundamentam a realidade injusta denunciada através do romance.

Partindo desses episódios, também se identificam outros, pertencentes ao cotidiano da cidade, que oferecem informações importantes para a compreensão do contexto social em que ela está inserida. Dessa forma, evidencia-se com maior clareza a trajetória de Luíza e a formação da sua visão de mundo. Consideram-se, então, três momentos fundamentais das suas memórias.

O primeiro deles descreve o nascimento da sina do cais, ou seja, a maldição que teria dado origem ao meio de vida das prostitutas de Parnaíba. O caso, contado a Luíza por Cremilda, diz que um dia, a mais bela e bem sucedida prostitua do cais se envolveu com um rapaz de família abastada e conhecida.

Apaixonado, ele anunciou o casamento para a família e, depois de ser perseguido pela cidade e deserdado, acabou assassinado por um marinheiro “amigado” com a tal mulher do cais. Acusada de participação no crime, ela foi para a cadeia e, mais tarde, descobriu-se que estava grávida. Passava as noites a perturbar a cidade com seus gritos de revolta, levando as damas da sociedade de Parnaíba a defenderem sua internação na Santa Casa até o nascimento da criança. Porém, o padre não aconselhou a transferência, alegando apenas que seria um “mau exemplo”. Motivo de vergonha para toda a comunidade, ela permaneceu presa:

A mulher passou os nove meses de gravidez gritando e chorando de noite, para que toda a cidade ouvisse. E quando a filha nasceu ainda chorava e gritava, blasfemando. Passou a maldizer o futuro da menina, que ela era culpada, haveria de penar, penar e pegaria barriga de marinheiro, e teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro.

A sina do cais é, portanto, uma conseqüência da omissão da igreja, da língua ferina e preconceituosa da cidade e da transgressão de um jovem que ousou unir as duas pontas de uma sociedade desigual, provocando o surgimento de uma maldição que há anos condena as mulheres nascidas na beira do rio. Nesse contexto, existe um elemento fantástico para justificar um abuso real – a força das palavras, proferidas durante um sofrimento intenso, é tamanha que atravessa os anos a produzir novas vítimas.

O que Cremilda conta nada mais é que um mito, o relato de um acontecimento primordial que condicionou a existência das outras prostitutas a partir de então.

A explicação mitológica para a vida miserável que levam as prostitutas é a sina do cais; ela determina toda a realidade e faz com que essas mulheres creiam na incapacidade de escrever a própria história. Toda vez que uma delas engravida de um marinheiro, é como se repetisse um ritual que remonta àquela praga, o erro original. Suspende-se a passagem do tempo e por um instante, volta-se àquele momento inicial, no qual mais um destino é marcado para sempre. As vidas se repetem indefinidamente, condenadas a esse ciclo de infelicidade, mas compreende-se o porquê e se aceita o fado.

A sociedade retratada no romance se assemelha às arcaicas, nesse aspecto da busca por imagens mitológicas para justificar a realidade. A crença na reprodução eterna dos eventos e nos desígnios de uma entidade superior também é um indício dessa aproximação. Todavia, na comunidade piauiense não há uma renovação do tempo, no sentido de purificação dos pecados, ou uma reverência sagrada ao passado. Há apenas uma repetição de arquétipos, uma incapacidade de escrever histórias particulares gerada pela pobreza e injustiça do meio social em que se encontram.

É importante ressaltar que, apesar de acreditarem num destino já traçado, as personagens ainda esboçam uma certa reação contra a realidade indesejada. Porém, sabem de antemão que se trata de uma tentativa vã, principalmente se essa reação é intermediada pela figura masculina. É o que acontece com Cremilda, na ocasião da perda de seu armazém, o qual havia obtido através de um ‘casamento de interesses’. Depois de anos de trabalho e dedicação, só lhe resta resignar-se diante do fracasso: “A gargalhada da mãe, a sua ironia – ‘mas de que adiantou tamanho sacrifício se eu sei, sempre soube, que um dia ia perder tudo? Mas foi divertido – no começo foi ainda mais divertido, eu ganhava dinheiro, era uma mulher de negócio, cheguei até mesmo a esquecer quem era, quem um dia voltaria a ser’”.

A impossibilidade de vitória diante desse fado é a fonte de sentimentos de vingança e revolta. A sina é imposta pela reprodução sexual, transformando a maternidade num momento de conflito - enquanto a filha se ressente da falta de escolha, a mãe se vinga da gravidez indesejada sobre a própria cria, transmitindo o fardo pesado da vida do cais: Minha mãe nunca me perdoou. A vingança foi ver a minha vida repetindo a sua, toda noite, todo dia, até o fim. Ela teve culpa, mas, não sei porque, nunca se julgou culpada. Quem sabe o que não sofreu da própria mãe?. A prostituição se torna um veículo de expressão da revolta. O dinheiro e os presentes que recebem são uma maneira de retirar algo de uma sociedade que lhes nega uma vida mais digna. Para tanto, utilizam o próprio corpo: era um gosto esquisito de vingança, tinha que se vingar do mundo, ou mais particularmente deles, dos desgraçados. Estranho que fosse uma vingança na própria carne, na própria alma. Todavia, com a passagem dos anos e a chegada da velhice, a inutilidade dessas batalhas vai ficando cada vez mais evidente. Diante das forças invisíveis que manipulam o cotidiano e da convicção de que nada pode ser feito contra elas, surge uma aceitação que não é fruto da passividade, mas da desesperança: Quantas vezes não lhe contara aquelas revoltas que se foram aplacando, dando lugar àquela paciência de gente sem destino, sem sorte”.

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