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sexta-feira, 4 de junho de 2010




Uma leitura psicanalítica de Rio Subterrâneo, de O. G. Rego de Carvalho

Tanto estardalhaço na elaboração dos textos em prosa nunca se havia percebido na literatura piauiense quanto no momento da chegada do livro Rio Subterrâneo, de O. G. Rego de Carvalho, em 1967. Sua estrutura aparentemente caótica termina por seguir uma linhagem de autores como Mário e Oswald de Andrade, em seus primeiros trabalhos de reconhecido apelo plástico e psicanalítico. Quadros arquetípicos que se engendram desde a infância até o controverso fim da adolescência servem de apoio à narrativa ogerreguiana, entrecortada de pequenas fobias, descobertas e resgates fundamentais para o prosseguimento da aventura rumo ao autoconhecimento.
Dessa forma, vai ganhando corpo a narrativa de Lucínio, na obra Rio Subterrâneo. Imperiosa, a voz do psiquismo desse personagem remete o leitor a um universo de símbolos e espasmos que são desencravados da memória de um jovem que se arvora a cruzar a linha imaginária que separa sanidade e loucura: o rio Parnaíba, para Lucínio, o insone.
Àqueles anos da década de 60, o país se contorcia com as cólicas decorrentes do regime militar, mas a prosa de Ogê parece correr literalmente às margens do rio de sangue que passava subterrâneo, oriundo das salas de tortura onde estudantes da mesma idade de Lucínio – personagem central do livro – agonizavam para manter em segredo informações que muitas vezes nem possuíam. Lucínio não sofria por ter consciência política, como os muitos estudantes revolucionários de sua geração. Seu “mal” era outro: a pantofobia.
Não é que fosse covarde, afinal de contas ele não tinha arroubos de herói épico, redentor de uma geração, mas, incapaz de se refazer das conseqüências de seus traumas, ele acabou enveredando pelo solitário caminho das perquirições da existência. Vivendo intensamente os últimos instantes que anteciparam a chegada de sua prima Helena a Timon, Lucínio repassou a vida inteira, remoendo os muitos momentos ruins e os poucos bons, tendo como cenário um céu nublado, as águas turvas do Parnaíba, a ponte, Timon e Teresina. Eis o background de um universo psicanalítico inteiro por se desvendar.
O céu nublado, com chuvas que se precipitam para demarcar o mundo cinza de tristezas, desventuras e medos de Lucínio; as águas turvas que amedrontam, principalmente quando aparecem no mundo onírico, pressagiando maus momentos; a ponte, indicando a passagem de um lugar a outro. O lugar, em primeira instância, pode ser tomado como o espaço geográfico, Timon ou Teresina; depois, como símbolo psíquico, designando a idéia ou o ponto de fuga para onde acorria o personagem em seus momentos de devaneio.
Esses são alguns dos itens que podem ser desvelados na leitura do texto de Ogê, mas existem outros. Muitos mais. O espelho, por exemplo, que foi objeto de estudo para Jacques Lacan, proporciona uma larga discussão em torno dos elementos que se encontram obliterados na mente das pessoas: remete ao encontro do “eu” consigo e com a imagem materna. Lacan observou a relação da criança que via sua imagem refletida no espelho, extraiu suas inferências. No capítulo O rosto na vidraça, não conseguindo dormir, Lucínio começou a evocar a figura do amigo Benoni, que se suicidara para provar a existência de Deus. Pela manhã, Lucínio ficou sabendo que José tinha o hábito de sair durante a noite para velar o sono do filho pela janela.
Novamente o universo psicanalítico: janela, criança (filho de José), sono, noite. Elementos que se enquadram no universo psicótico de Lucínio. Por ordem: janela – fração de quadro inteiro da realidade; criança – o reflexo (paterno) projetado na condição do observador (José); sono – descanso necessário do homem; noite – fase do dia marcada pelos enigmas que circundam a humanidade desde que se anda para frente.
Lucínio é o indivíduo que se arvora ao ensimesmamento e às conseqüências que vêm com o mergulho no próprio interior. Ele é o personagem-problema contemporâneo, sobre quem não pode recair a pecha da alienação ou do descaso político com sua geração, que amargava dias difíceis em salas de tortura e antevia os anos de repressão política da década de 70. A sua trajetória de tortura já estava definida: conviver com os fantasmas da juventude; ter consciência plena de seus antecedentes; amar os labirintos do rio Parnaíba, as curvas de amores difíceis e os desejos recônditos de conhecer um mundo provinciano e particular, particular demais, intimista mesmo, psicótico.
Por ser uma prosa intimista e revolucionária, a abordagem de Rio subterrâneo proporciona um sem-número de leituras que vão desde a elaboração de quadros arquetípicos Jungianos, passando pelo universo simbólico de Jacques Lacan até as perseguições analíticas de Freud. Tudo isso numa prosa psicológica que obedece às leis criteriosas do rio que habita em todos. O rio caudal, misterioso, subterrâneo da mente humana, que ainda tem tanto a ser estudado, revela-se um filão para quem se interessar em conhecer um pouco mais os mecanismos envolvidos no universo do homem autoconhecendo-se.

Derly Honório
Professor de Língua Portuguesa do curso de Comunicação Social - Jornalismo, da IERSA

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